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quarta-feira, maio 05, 2010

Carlos Núñez, Galícia e o Brasil

Todos os membros do Café Irlanda já conheciam a trajetória do gaiteiro, flautista, e multi-instrumentista galego Carlos Núñez, creio que apenas eu, Caio, fui o último a conhecer seu trabalho. Em matéria de música celta, para mim, o que veio primeiro foi a música irlandesa dos Estados Unidos (Flogging Molly, Dropkick Murphys, Gaelic Storm, etc.). Depois, a música irlandesa da Irlanda e da Grã- Bretanha (Dubliners, the Pogues, Chieftains, Flook, Lúnasa, Riverdance, Breabach, Cruachan, etc.). Até que um dia cheguei, acidentalmente, em Carlos Núñez, e por causa dele, na Galícia.



A primeira vez que eu ouvi falar no Carlos Núñez foi no álbum do orkut do Alex Navar. Vi algumas fotos de uma palestra do tal sujeito, e depois de uma - pasme - session que ele tinha feito com o tal sujeito (fotos no fim do post). Até ali, caguei baldes, afinal, quem é esse cara? Não tinha idéia. Santa ignorância! Hoje eu arranco até o último fio de cabelo só de raiva por não ter estado lá. Naquela session estava presente não apenas o Alex, mas também nosso bom e velho apiteiro Daniel Sinivirta, o gaiteiro niteroiense Bruno Trece (Niterói, porra!), Phreddie Cadarn, e alguns músicos do Anam Glas, banda de música irlandesa que veio antes da gente que chegou a tocar, junto com o Alex, naquela novela da Globo, "Eterna Magia" (que um certo amigo meu gosta de chamar de "Eterna Porcaria").

Resolvi jogar o tal sujeito no Google e no You Tube. Além de descobrir a monstruosidade musical por detrás de sua simpatia, ganhei de brinde a música e cultura da Galícia.

Para quem não sabe, um pequeno resumo: A Galícia é uma nação celta semi-independente no Noroeste da Espanha, colado com Portugal, bem em cima, fechando o litoral da pontinha da Península Ibérica. O Galego, língua da região, é muito parecido com Português - e, pasme - com o Português do Brasil! Não é à toa: na época do Império Romano, Portugal era a província da Lusitannia e a Galícia a província da Galaecia. Durante grande parte da Idade Média, em toda aquela região falava-se, além do Árabe, o Português Medieval. É, árabe mesmo: os árabes do norte da África conquistaram a Península Ibérica e ficaram lá durante uns 400 anos. O último grande reino Árabe na Espanha, Granada, só foi reconquistada pelos reinos cristãos (leia-se Reino de Castela) em 1492. Esse ano parece familiar? É, isso mesmo: o ano da descoberta da América! Os árabes, de fato, ficaram lá um bom tempo, e é essa mais ou menos a razão de Galícia e Portugal serem países diferentes. Durante a Reconquista Cristã contra os reinos árabes, A Galícia acabou ficando sob domínio castelhano, e Portugal não. Até hoje, apesar de terem cultura, língua e música diferentes, são parte da Espanha, embora tenham alguma autonomia administrativa. O lugar mais importante da Galícia, a meu ver, é a cidade de Santiago de Compostela, ponto central de romarias e peregrinações desde a Idade Média até hoje. E foi por causa de Santiago, na verdade, que eu ouvi falar da Galícia pela primeira vez.

Meus avós, em 2000 ou 2001, fizeram esta peregrinação. Foram desde o País Basco, na fronteira com a França, até a Galícia, a pé. Levaram um mês, e conheceram gente do mundo todo - inclusive um escocês, que veio nos visitar aqui no Brasil em 2006 e que os hospedou, na Escócia e em Portugal onde também têm casa, em 2002 e 2008. As histórias e lembranças que os meus avós trouxeram da Escócia, quando eu tinha 12 anos, foi o que trouxe o meu interesse pela cultura celta de lá, e pelas gaitas de fole - dali para a Irlanda, foi um pulinho. Engraçado que, agora que escrevo isso, percebo que tudo começou na Galícia, e para lá volta. Recentemente perguntei aos meus avós se eles chegaram a ver algum gaiteiro galego, em sua viagem. A resposta da minha avó:
- É, tinham uns velhinhos que ficavam nas praças tocando aquele negócio. É horrível! É um fióóóóóóóóóóóon fiu fiu fiu que não pára, parece um pato sendo esganado (Carlos Núñez, se você um dia ler isso, quero que fique claro que eu penso diferente, ok?).

Por algum motivo estranho, quando ela foi pra Escócia ela achou o máximo as gaitas de fole de lá. Vai explicar...

Voltando ao Carlos Núñez!

Os vídeos do You Tube que eu achei com o Carlos Núñez eram espetaculares. A banda dele é toda excelente, sem falar dos convidados. O cara estava tocando com ninguém mais nada menos do que os Chieftains! Além disso, acabei topando com algumas "coincidências" bem agradáveis. Já estava a algum tempo afim de ver o filme "Mar Adentro" do diretor espanhol Alejandro Amenábar, com o Javier Bardem no papel de um galego que fica tetraplégico e tenta conseguir na Justiça o direito da Eutanásia. Antes eu nem sabia que o filme passava-se na Galícia, e já foi uma surpresa agradável (embora o idioma do filme seja castelhano, o que quebrou um pouco). A trilha sonora era de pura música galega, e fiquei pasmo ao constatar, nos créditos, que a gaita da trilha sonora era do próprio Carlos Núñez! Depois disso, comecei a ver que o cara estava em todas. Festival celta na Bretanha Francesa? Lá está ele. Celtic Connections na Escócia? Lá vai o galego. Música Brasileira? Até nisso o cara mete lá a gaita dele. E é aqui que chegamos ao clímax da narrativa!


O SUJEITO GRAVOU UM CD QUE MISTURA MÚSICA CELTA COM MÚSICA BRASILEIRA!!1! MAS O CAFÉ IRLANDA NÃO É JUSTAMENTE ISSO, MINHA GENTE!!?!?!1?

Na verdade, é por isso que eu estou escrevendo este post sobre ele. Chamou-me a atenção, esses dias, uma matéria no jornal O Globo sobre ele, que tenho guardada aqui em casa:


Isso saiu no Segundo Caderno do Jornal O Globo, em Abril (Link para a reportagem em tamanho maior). Isso também saiu na Folha de São Paulo, e também nos jornais argentinos La Nación, La Critica e El Clarín (links diretos para as reportagens, coletadas no site de Carlos Núñez).

Ler tantas comparações entre a música brasileira e a música celta, mais especificamente comparando as rodas de choro com as irish jam sessions, e as pandeiradas galegas com os ritmos nordesinos, me dão pessoalmente um triunfante gostinho de "eu não disse?", mesmo que muitas dessas reportagens tenham sido escritas em setembro do ano passado na ocasião do lançamento do CD, quando o Café Irlanda era ainda um feto e não tinha nem nome. Carlos Núñez, sem eu saber, já havia provado por A + B tudo aquilo que eu já havia chegado à conclusão sozinho durante nossa experiência de banda. Principalmente quando ele diz: "O futuro da música celta está no Brasil". Eu sei, Carlão! Você tem razão! Café Irlanda, Gaiteiros de Lume, Terra Celta, Anam Glas, Braia, Merrow, Leannan Shee, Dundalk, Tuatha de Danann, e muitos outros: estamos todos aqui para provar que o que você diz é verdade.

Aliás, eu acabei entrando, sem saber, em uma sintonia muito grande com o Terra Celta. Em uma entrevista que eu vi no You Tube a um tempo atrás, ouvi uma declaração que eu mesmo já tinha feito com alguns amigos meus algumas vezes: "Nós não somos irlandeses, nem queremos ser, por isso fazemos as coisas do nosso jeito." Brilhante! O Terra Celta tem um jeito bastante brasileiro de tocar música irlandesa, aquele sanfoneiro nem conseguiria passar por irlandês: o cara tem um jeito de tocar acordeon que é muito forró! O Café Irlanda e o Terra Celta tem muito em comum, até a porra-louquice... e, principalmente, a maneira como vê a música irlandesa. Acho que é exatamente o que o Carlos Núñez expressa com o seu CD: somos todos galegos, brasileiros, irlandeses, bretões, escoceses, galeses, espanhóis, latino-americanos e europeus: e comungamos de uma mesma linguagem musical que é a música celta, mas fazemos da nossa própria maneira. Fazemos a música celta do nosso jeito brasileiro, e o Carlos Núñez fez logo o contrário: celtizou a música brasileira. Eu, com meu jeito nada pretencioso, ainda digo mais: acho que este é o início de um novo gênero músical - a Música Celta Brasileira.

A minha razão de misturar música brasileira e irlandesa, além do fato de ser um genuíno músico brasileiro e ter orgulho de nossa tradição e cultura musical, e também do fato de adorar experimentalismo e fusão de gêneros, é que já havia observado uma grande ligação entre a música medieval portuguesa e a música tradicional brasileira. O pontapé inicial foi em 2008, quando comecei a estudar História na Universidade Federal Fluminense, aqui em Niterói. Eu sempre gostei de música medieval, e um dos meus grupos favoritos é ligado à UFF: O Grupo de Música Antiga da UFF.


Esse grupo é formado por estudiosos de música, além de doutores em História Medieval pela mesma universidade. Já tive o prazer de assistir a algumas de suas apresentações - eles usam instrumentos medievais feitos a partir de reconstruções e estudos, e usam alaúde, violas da gamba, vielas de roda, harpa, cítaras medievais, todos os tipos de flautas e ocarinas, rabecas, e muitos instrumentos estranhos que nunca ninguém havia ouvido falar. Uma dessas apresentações, inclusive, foi no Simpósio Internacional de Estudos Celtas e Germânicos da Brathair em São João del Rei-MG, onde conheci também o já mencionado Bruno Maia e o Braia.
O principal foco do Música Antiga da UFF são as Cantigas de Santa Maria da corte de Alfonso X, o Sábio (até por serem os registros de música medieval melhor conservados), e adivinha de onde é que essas cantigas são? Isso mesmo, voltamos à Galícia. A música galega folk e contemporânea, aliás, ainda lembra muito essas velhas cantigas.

Em 2004, o Música Antiga da UFF gravou o CD Medievo-Nordeste: Cantigas e Romances.

O CD Medievo-Nordeste foi patrocinado pela Xunta de Galícia (uma espécie de governo da galícia), e produzido pelos dois principais centros de estudos da cultura galega do Rio de Janeiro e Brasil: o Núcleo de Estudos Galegos da UFF e o Programa de Estudos Galegos da UERJ. O encarte do é um artigo histórico da Prof. Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval, que trata da investigação sobre a influência da música medieval portuguesa e galega na música nordestina do Brasil, intitulado "A perpetuação de cantares medievais no Brasil". Inclusive, no CD, há duas músicas coletadas do cancioneiro popular brasileiro, que seguem a métrica das músicas medievais da península Ibérica, inclusivem remetem-se a ela. O grupo, em suma, pegou várias Cantigas de Santa Maria e introduziram instrumentos brasileiros como a viola caipira e a rabeca (instrumento este genuinamente medieval, derivado do rebab árabe), e o resultado foi uma prova cabal que, de fato, a música celta galega e a música nordestina são muito parecidas. Quem já ouviu aos sets mesclados do Café Irlanda já deve ter notado a semelhança do Baião de Luiz Gonzaga, de Feira de Mangaio ou da Asa branca com a música irlandesa. O processo é o mesmo - aliás, Asa Branca é uma das músicas gravada por Carlos Núñez em seu Alborada do Brasil, tocando gaita galega.

Eu já havia lido sobre algumas teses que investigavam a cultura medieval portuguesa no Brasil. Um historiador que estuda o mesmo processo, só que no México, é o francês Jérôme Baschet. Em seu livro "A Civilização Feudal", ele defende o que chama de "Herencia Medieval de México", comparando o feudalismo com o caudilhismo latino-americano, e as similaridades nas relações de poder. Cá no Brasil, o caso é o mesmo, inclusive com estudos de linguística que estudam a fala das comunidades interioranas e traçam paralelos com o português medieval. A construção de frases e a pronúncia de palavras, como "fror" (flor), remetem a ele. Os marinheiros portugueses que vieram para cá não eram lá muito refinados, e a baliza cronológica que os historiadores colocaram para o fim da Idade Média era ali em 1492, só dois anos antes da descoberta do Brasil. Não é de se espantar que os homens que aqui vieram em 1500 eram, sim, todos medievais, não se espanta que sua música também o fosse.


Carlos Núñez acertou em cheio no CD Alborada do Brasil. Embora tenham algumas músicas bem chatinhas, e alguns arranjos moderninhos que eu não gostei (porra!? rap, Carlão?), o álbum é excelente, é material da mais alta qualidade. Recomendo a todos os membros do Café Irlanda e a todos aqueles que por ele se interessarem. Aliás, a versão dele de Feira de Mangaio é bem interessante, e Asa Branca na Gaita de Foles é de chorar de tão lindo.

Daniel Sinivirta + Carlos Núñez + Xurxos Núñez (irmão do Carlos, no Bodhràn) - Não, não é montagem.



É isso, gente. Quinta-feira, no Calabouço do Rock, é Café Irlanda de novo.

By: Caio Gregory

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